19/09/2022
Maíra Menezes
Altos índices de infecções por hepatite B em gestantes e doadores de sangue na província de Bié, em Angola, foram identificados na tese do infectologista Peliganga Luis Baião, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Medicina Tropical do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto (UAN), em Luanda, e chefe do Departamento de Controle de Doenças na Direção Nacional de Saúde de Angola, Peliganga é o primeiro estudante angolano a concluir o doutorado no IOC.
Integrantes da banca examinadora destacaram relevância dos resultados para a saúde pública em Angola. Na mesa, a partir da esquerda: Gerson Pereira, Maria Fernanda Monteiro, José Pilotto, Carmem Gripp e Peliganga Baião. No telão, Franco Mufinda. Foto: Arquivo
Orientada pela pesquisadora do Laboratório de Hepatites Virais e chefe do Ambulatório de Hepatites Virais IOC, Lia Laura Lewis Ximenez, a pesquisa contou com um amplo trabalho de campo, realizado na província do Bié, área que foi fortemente afetada pela guerra civil angolana.
Os pesquisadores coletaram amostras de cerca de mil gestantes e mais de 2 mil familiares e contactantes de pacientes, incluindo filhos de mães diagnosticas com hepatite B. Também realizaram coleta de amostras de 500 doadores e analisaram quase 58 mil registros do banco de sangue da região, referentes ao período de 2005 a 2020.
A infecção foi confirmada em 8,7% das gestantes. A taxa entre os doadores de sangue ficou em 8,5%.
Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Medicina Tropical, Peliganga destacou que, além de caracterizar as infecções, a tese sugere medidas que podem contribuir para conter a transmissão do vírus no país.
“Quando trabalhei como médico clínico no Bié, vi pessoas jovens com doença hepática crônica. Com a conclusão do doutorado, temos evidências robustas sobre o problema e deixamos nossas recomendações para mudar o cenário que registramos”, afirmou o infectologista, que cursou o doutorado com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
A orientadora do estudo ressaltou a relevância do trabalho, apontando que a transmissão da hepatite B de mãe para filho, durante a gestação, é preocupante porque as crianças têm maior possibilidade de desenvolver quadros crônicos, com risco de cirrose e câncer hepático.
“Os resultados da pesquisa estão publicados em dois artigos científicos e podem subsidiar políticas públicas”, disse Lia.
Coletas de amostras foram realizadas no Hospital Geral do Bié e no Centro Materno-infantil do Cuito. Foto: Arquivo
A defesa da tese foi realizada no dia 31 de agosto, no Auditório Emmanuel Dias, do Pavilhão Arthur Neiva, no campus da Fiocruz, em Manguinhos, no Rio de Janeiro.
Presidida pelo pesquisador e chefe substituto do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC, José Henrique Pilotto, a banca examinadora do trabalho teve a participação do secretário para a Saúde Pública do Ministério da Saúde de Angola, Franco Cazembe Mufinda, que participou por meio de videoconferência, e pelo diretor do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde do Brasil, Gerson Fernando Mendes Pereira.
Também participaram da banca a decana da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, em Angola, Maria Fernanda Affonso Dias Monteiro, e a pesquisadora do Laboratório de AIDS e Imunologia Celular do IOC, Carmem Beatriz Wagner Giacoia Gripp. Além disso, o cônsul geral de Angola no Rio de Janeiro, Mateus de Sá Miranda Neto, esteve presente na defesa.
Primeiros passos para cooperação internacional
A presença das autoridades proporcionou os primeiros entendimentos entre o IOC, a Universidade Agostinho Neto e o Consulado Geral de Angola para o estabelecimento de um acordo de cooperação no Ensino com vistas à formação de mestres e doutores de Angola em Programas de Pós-graduação do Instituto.
A decana da Faculdade de Medicina da UAN considerou que a parceria pode ajudar a expandir a pesquisa científica no país.
“Queremos estabelecer a cooperação. A formação de pós-graduação capacita os docentes para a investigação científica. Isso é importante em países como os nossos, que ainda têm sérios problemas de saúde, que precisam ser estudados”, pontuou Maria Fernanda.
A coordenadora da Pós-graduação em Medicina Tropical, Vanessa Salete de Paula, também observou o potencial de um possível acordo.
“A Medicina Tropical, assim como outros programas do IOC, tem um histórico de receber alunos estrangeiros. Vemos que os trabalhos desenvolvidos pelos estudantes têm alto impacto nos seus países”, afirmou a pesquisadora.
Nos programas de pós-graduação Stricto sensu, o IOC já formou mais de 60 estudantes de Moçambique, Angola e Cabo Verde. Atualmente, 11 estão em processo de formação, sendo 9 em cursos de mestrado e dois de doutorado.
Esforço para conhecer a realidade
Os esforços para a coleta de amostras foram iniciados em 2007, durante o mestrado de Peliganga no Programa de Pós-graduação em Medicina Tropical. Em 2009 e 2010, foram realizadas novas etapas de trabalho de campo, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio de editais do Programa ProÁfrica.
Além de treinar profissionais para coletar amostras de doadores num banco de sangue, os pesquisadores ofereceram testes rápidos e coletaram amostras de gestantes e puérperas atendidas em duas unidades de saúde.
Também estabeleceram um ambulatório de hepatites virais, para testagem e atendimento de pacientes, no Hospital Geral do Bié, que colaborou com a pesquisa. Por fim, realizaram o rastreamento das pacientes com infecção confirmada para oferecer os testes aos seus filhos e contactantes domiciliares.
Lia Lewis e Peliganga Baião em frente ao ambulatório montado numa tenda, na área de acampamento para familiares de pacientes internados no Hospital Geral do Bié. Foto: Arquivo
“Foi um trabalho árduo para realizar as coletas e para organizar a logística do envio das amostras, mas a pesquisa de campo é fundamental para conhecer a realidade local e para obter dados qualificados. Esse é um aprendizado importante na formação de pesquisadores”, ressaltou Lia.
Risco de transmissão vertical
As análises foram iniciadas em 2010, mas precisaram ser interrompidas por duas vezes. Na primeira, Peliganga teve de retornar ao seu país para atuar na Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto. Na segunda, já durante o doutorado, o infectologista atuou na linha de frente da resposta à pandemia da Covid-19 em Angola.
Além da hepatite B, os pesquisadores investigaram os casos de HIV e sífilis em gestantes. Os índices ficaram em 8,7% para hepatite B, 1% para o HIV e 7% para sífilis.
Confirmando o risco de transmissão vertical da hepatite B, a pesquisa constatou casos de infecção entre filhos das pacientes, especialmente naqueles que não tinham recebido a vacina da doença.
Entre as recomendações da pesquisa está a necessidade de expandir a vacinação dos recém-nascidos, que reduz em mais de 90% o risco de infecção das crianças.
“Como nem todos os partos são realizados em unidades de saúde em Angola, sugerimos que as parteiras tradicionais, que já estão integradas no sistema de saúde, possam realizar a vacinação para proteger a população”, pontuou Peliganga.
Achados entre doadores de sangue
Os índices da hepatite B entre doadores de sangue (8,5%) também foram superiores aos valores observados para hepatite C (2%), HIV (2,1%) e sífilis (4,4%).
Além disso, em 3% das amostras analisadas foi identificada a possibilidade de infecção oculta por hepatite B – um tipo de infecção que não é detectada com testes de sorologia e só pode ser descoberta com exames moleculares.
Assim, embora tenha ocorrido melhoria no processo de triagem dos bancos de sangue do país, com a introdução de um teste sorológico mais sensível em 2019, os pesquisadores consideram que o risco residual de transmissão da hepatite B em transfusões continua sendo um problema.
Além do levantamento de dados, o intercambio possibilitou considerações sobre ações bem-sucedidas implementadas nos bancos de sangue do Brasil que podem servir como exemplo para Angola.
“É possível melhorar esse cenário. O fluxo que já está estabelecido para a triagem do HIV pode ser aproveitado para a hepatite B. A tese apresenta um resultado, com evidência, relevância e pertinência. Agora, é preciso agir”, apontou Maria Fernanda.
*Edição: Vinícius Ferreira